A ÚLTIMA CEIA
1° Primeira parte da última ceia
No dia dos ázimos, diz são Lucas (22), Jesus mandou a Pedro e João preparar a Páscoa. “Entrando na cidade, disse-lhes, encontrareis um homem a carregar água; segui-o até a casa a que se dirige, e falai ao pai de família; este vos mostrará uma grande sala mobiliada, preparai lá o que é necessário”. A Páscoa simboliza aqui a Eucaristia. A sala mobiliada é a alma em estado de graça, enriquecida de virtudes sobrenaturais e dos dons do Espírito Santo. Pedro e João representam a fé e o amor que devem dispor-nos a receber o Homem-Deus.
À tarde da quinta-feira santa, o Cordeiro pascal estava sobre a mesa do cenáculo onde se reuniram os discípulos com o divino Mestre. Esse cordeiro figurava a augusta Vítima da cruz e dos nossos altares. Ceava-se de pé, o bastão na mão, e os rins cingidos como para viagem. Ajuntavam-se ervas silvestres e amargas, e tudo era comido às pressas. Que nos indicam essas cerimônias? Primeiro, que a Eucaristia é o alimento do exílio e da viagem para o céu; depois, que para ela é necessário dispor-se pela castidade, mortificação dos sentidos e com uma santa avidez.
Pelo fim da refeição, o Salvador ergue-se da mesa, toma uma toalha com que se cinge, derrama água numa bacia e, de joelhos, diante dos apóstolos, lava-lhes os pés. Anjos do céu, que dizeis? Não teria sido favor excessivamente grande para os discípulos, se Jesus lhes permitisse que lhe lavassem os sagrados pés com suas lágrimas? Mas não! Ele mesmo quis prostrar-se aos pés dos seus servos, a fim de nos ensinar a humildade. Quis lavar-lhes os pés para nos mostrar a pureza interior exigida por seu divino Sacramento. A humildade e a pureza de coração são, de fato, duas disposições requeridas para alguém se unir a Jesus no banquete eucarístico.
Ó meu Redentor, mostrai a nossa miséria e a ternura da vossa caridade, a fim de que de Vós nos aproximemos com profunda humildade e uma confiança sem limites em Vossa bondade. Inspirai-nos a coragem de mortificar os nossos sentidos e más inclinações. Atraí para Vós todos os nossos afetos. Desejamos receber-vos com um coração embalsamado de fé, piedade e devoção, a fim de que a Comunhão sacramental produza em nós os mais preciosos e duráveis frutos.
2.° Instituição da Eucaristia
Depois de ter dado aos seus esse exemplo de humildade, lavando-lhes os pés, o divino Mestre pôs-se à mesa, e tomando o pão, benzeu-o e partiu-o, dizendo: “Isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Depois, tomando o cálice, disse: “Isto é o meu sangue, que será derramado por vós” (2 Cor 11, 24; Mt 26, 27). Essas expressões: “partiu-o, será entregue, derramado”, recordam-nos os sofrimentos do Homem-Deus; e, segundo o ensinamento da Igreja, a Eucaristia é uma recordação da paixão perpetuada entre nós.
Mas não é apenas uma recordação: é a realidade continuada de maneira incruenta. Como sacrifício, a Eucaristia renova a imolação do Calvário; como sacramento, aplica-nos os seus frutos. Sobre os altares Jesus é imolado pela espada misteriosa das palavras da consagração. O seu corpo quebra-se aparentemente na Santa Missa sob a forma do pão, e o seu sangue parece difundir-se sob as espécies do vinho. Assim se verifica a doutrina do Concílio de Trento: “No divino sacrifício oferece-se a mesma Vítima da cruz; Jesus Cristo é o mesmo sacrificador que, pelo ministério dos sacerdotes, se oferece a Deus em nossas igrejas como sobre o Calvário, com exceção apenas do modo”. Daí se evidencia que uma missa poderia resgatar o mundo da mesma forma como a paixão e a morte do Redentor.
Nos antigos sacrifícios, figuras do nosso, imolava-se a vítima e depois comia-lhe as carnes, tornando-se comensais de Deus. Da mesma forma, pela comunhão, participamos da imolação do altar, substancialmente a mesma do Calvário. Jesus dá-se a nós sob a forma de alimento; ora, uma vítima, para servir de alimento, deve primeiro ser imolada. Eis por que o Salvador só desce a nós depois de sacrificado sobre o altar; e consumidas as sagradas espécies, seu corpo cessa de nutrir as nossas almas, mas o seu espírito permanece em nós. A nós cabe o dever de submeter-nos a Ele para recebermos a vida, o impulso e a fecundidade. Ele traz-nos o fruto das suas dores; não esqueçamos; e em vez de procurarmos na comunhão doçuras sensíveis, procuremos tirar dela: 1.° A luz que nos mostra os defeitos a corrigir; 2.° A coragem de lutar constantemente para a humilhação do nosso orgulho e a conformidade da nossa vontade com o beneplácito divino.
Jesus-Hóstia, vítima do Calvário e dos nossos altares, lembrai-nos que, assistindo à Santa Missa e principalmente participando do banquete eucarístico, devemos considerar-Vos como um Deus crucificado e ressuscitado e, por isso, crucificai-nos convosco, morrendo para a vida sensual, natural e imperfeita, a fim de ressuscitarmos convosco por uma vida de fé, sacrifício e oração, a qual nos una estreita e eternamente convosco.
“Jesus, vinde, tenho os pés imundos. Fazei-vos servo meu. Derramai água na bacia; vinde, lavai-me os pés. Bem o sei, temerário é o que vos digo, mas temo a ameaça de vossas palavras: ‘Se não te lavar os pés, não terás parte comigo’. Lavai-me, portanto, os pés para que tenha parte convosco. Mas, que digo, lavai-me os pés? Pôde dizê-lo Pedro que necessitava de lavar só os pés, porque estava todo limpo. Eu, ao contrário, uma vez lavado, preciso daquele batismo do qual vós, ó Senhor, dizeis: ‘Quanto a mim, com outro batismo devo ser batizado” (Orígenes, Das orações dos primeiros cristãos, 63).
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